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Arpen/SP – A influência da fala no registro do nome e a retificação por erro evidente

Talvez você conheça alguém que tenha sido registrado com nome ou sobrenome errado. Talvez esta pessoa seja um parente seu, ou até mesmo este caso possa ter ocorrido com você. A questão é que episódios como estes não são assim tão raros quanto parecem. Mas o que se pode notar é que tais erros eram muito mais recorrentes nas décadas anteriores, mais especificamente na primeira metade do século XX, e em sua enorme maioria, com sobrenomes e nomes de origem estrangeira.

Com as imigrações ocorridas no Brasil, tendo suas principais levas realizadas entre meados de 1800 até as primeiras décadas de 1900, diversos italianos, portugueses, japoneses, espanhóis, alemães e árabes estabeleceram suas vidas em territórios brasileiros, arrumando empregos, criando suas casas e instituindo famílias. Por meio das uniões, filhos de origem brasileira foram gerados, dando início a linhagens familiares, que tinham entre seus primogênitos, estrangeiros.

Durante este processo, que culminou na geração de novos descendentes, um importante passo para consumar aquela criança era o ato de registrá-la. No momento que estes mesmos imigrantes se deslocavam aos cartórios de Registro Civil espalhados pelo País, muitos não levavam seus documentos de identidade e, na maioria dos casos, isso ocorreria simplesmente porque eles não os possuíam. Assim, o registro de seus filhos e descendentes eram realizados utilizando-se da única forma possível na época: a fala.

Documento: Um arquivo novo

“Não recordo qual foi a primeira lei que introduziu o documento de identificação no Brasil, mas foi por volta da década de 1960. É muito recente considerando a história do povo brasileiro, sendo assim, eram poucas as pessoas que compareciam ao cartório com documentos”, explicou Gisele Calderari Cossi, oficial do cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais de Santa Rosa de Viterbo (SP), uma serventia instalada no ano de 1897. “Um dos primeiros documentos que as pessoas passaram a ter, no decorrer da história, lá em meados de 1920/30, foi o título de eleitor, porque elas tinham o direito de votar”, lembrou a oficial.

Um outro fato, que facilitava mais ainda a possibilidade dos erros, era que até o ano de 1929, os registros de nascimento eram feitos apenas com o prenome do indivíduo, ou seja, com o primeiro nome, sem o sobrenome de família. “São raros os registros de nascimentos que tenho aqui – de antes de 1929 – que possuem nome e sobrenome”, disse a registradora.

Para estes casos, Gisele explica que a inclusão do sobrenome nos registros dos descendentes do registrado devem ser feitos a partir da certidão de casamento ou de óbito do avô ou pai da pessoa. “Porque na maioria das vezes só declaravam o sobrenome no registro do casamento, e é geralmente nesse registro que encontramos o sobrenome desta pessoa”.

Por ser uma oficial de um cartório que possui documentos de mais de 120 anos de história, Gisele tem bastante experiências em casos de erros antigos em sobrenomes de famílias, os quais podem ser corrigidos conforme seus verdadeiros nomes de batismo, por meio de procedimentos de retificação extrajudicial, requeridos pelo parente vivo mais próximo, como netos ou bisnetos.

Ao lembrar sobre os casos ocorridos no cartório de RCPN de Santa Rosa de Viterbo, Gisele se lembra de um recente: Os pais de Carlos* chegaram ao Brasil vindos da Itália, e casaram em território brasileiro, e, muito provavelmente, pelas questões que diferiam a língua portuguesa da italiana, fez com que o pai tivesse seu prenome alterado de Giuseppe para José, tornando-o “abrasileirado”. Gisele conta ainda que no caso da mãe também havia um erro. Seu sobrenome estava o mesmo do marido. “Aqui no Brasil temos o hábito de colocar o sobrenome do marido na esposa, após o casamento. Só que na Itália não é assim que funciona. Lá as mulheres continuam com seu sobrenome de família, sem inserir o do marido”.

A oficial ainda enfatiza sobre possíveis alterações motivadas por leis e costumes de cada país, comentando sobre a importância de se conhecer as normas de cada nação. “Para se retificar, não pode ficar apenas nas questões concretas, você também tem que saber da história e da maneira que tratam tudo isso no país de origem da família”, disse.

A fala e seus meandros

Com a falta de documentos que atestassem seus nomes verdadeiros, grafados da maneira correta, muitos imigrantes, ao realizarem os registros de seus casamentos e de nascimento de filhos, tinham de utilizar-se da fala para comunicar seus nomes aos oficiais dos cartórios. Por meio da prática, era comum ocorrerem erros, visto que eles não possuíam o português como sua língua mãe e, em muitos casos, ainda tinham dificuldades com a pronúncia correta.

Beatriz Raposo de Medeiros, professora de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, e especialista em fonética, enfatiza que estes episódios podem ser analisados em muitos níveis linguísticos. “Quando tratamos de fala que se transforma em escrita – que é este o caso: uma fala de outra língua que se transformou em escrita – estamos falando de escrita, que é o registro de nascimento escrito; de som falado; de percepção da fala; e também de interlíngua, que é a percepção de uma outra língua”, comentou Beatriz.

A professora destaca ainda sobre a percepção da pessoa quanto ao som da fala, sendo essa uma das principais causas de haver erros nos registros de nomes. “Nós temos uma visão alfabética dos sons, nós não ouvimos os sons como eles realmente são. É como se tivéssemos um filtro em nossa cabeça pelo qual passasse o som da fala e esse filtro deixasse passar apenas a forma correspondente à sua escrita”, explicou Beatriz.

Um exemplo de percepção de som que alterou a grafia de um nome foi o caso de Abraão Eissa, que tem seus primos e tios com a grafia de “Issa” no sobrenome, sem a letra “E” no início. Sendo uma palavra árabe que significa Jesus, o nome é pronunciado no dialeto sírio como “Eissa”, acentuando a sílaba inicial, que provocou em um ditongo na grafia portuguesa.

Beatriz esclarece que “isso é o que chamamos de percepção da interlíngua. Então a pessoa que foi registrar falou em árabe, com a pronúncia que é do árabe, e por isso, talvez, tenha pronunciado essa ditongação. E o oficial, que teve de grafar o nome, como era falante nativo de outra língua, grafou o que ouvido dele acusou como sendo o mais fidedigno, sendo esse ditongo ‘ei’, que realmente existe no português brasileiro, tanto na fala quanto na escrita”.

Erros atuais e retificação

Mesmo tendo a maioria das falhas ocorridas no passado, erros de nomes em registros de nascimento, casamento e óbito ainda são possíveis de acontecer. Como no caso de Luciana Sebastiana do Nascimento, filha de Oliveira Ferreira do Nascimento e Doralice Sebastião do Nascimento.

No registro de nascimento e de casamento de sua mãe, Doralice, o sobrenome da família consta grafado corretamente: Sebastião. Mas na certidão de nascimento da filha, Luciana, o sobrenome foi redigido errado, tornando-o feminino, e sendo grafado como “Sebastiana”. Ao comentar sobre o fato, que foi um erro de atenção do próprio registrador, que redigiu o sobrenome sem estar de acordo com o dos pais, Luciana conta que sua família acredita que o responsável pelo registro “não deve ter lido direito, e meu pai não prestou atenção após o registro”.

Gisele Cossi diz que nestes casos, “quando se apresenta um documento e você vê que foi um erro do cartório”, a retificação seria “atribuição do oficial da serventia, não havendo cobrança com relação à parte”. Mesmo sabendo que não haveria gastos com a retificação, Luciana diz não pensar em arrumar seu sobrenome por “já ter acostumado”, e também pelas possíveis burocracias que envolverão o ato.

Para se fazer uma retificação por erro evidente em cartório, ou seja, quando o sobrenome da pessoa está redigido errado, “ela precisa fazer um requerimento, e o primeiro passo é retificar o primeiro registro errado”, lembra a oficial. “No caso da Luciana, que a mãe está com o sobrenome Sebastião e apenas ela está com o sobrenome Sebastiana, vamos precisar do registro de casamento dos pais, ou, caso não sejam casados, da certidão de nascimento da mãe. E a partir deste documento, e com base nesse registro anterior, você retifica o nascimento da Luciana. Posteriormente, com base no registro dela, serão feitas as retificações dos registros existentes, sendo o casamento, o óbito, o nascimento dos filhos e assim vai”, explica Gisele.

“Eu gosto de falar que isso é um efeito dominó, de um registro vai para o outro e o outro vai derrubando todo mundo. Então se eu quero retificar o último da estirpe da família, o primeiro tem que estar retificado, o segundo também, e o terceiro também… Porque assim que o primeiro retifica, ele dá reflexos em todos até chegar ao último, que é o essencial e o qual está solicitando a retificação”.

Por se tratar de mais de um registro, e em algumas vezes, de vários documentos, muitos optam por não realizarem a retificação. Mas a registradora destaca que apesar de parecer burocrático, “isso tudo é segurança jurídica e registral, evitando possíveis problemas futuros”.

Gisele enfatiza a importância de se ter cuidado com retificações de nome, tanto por parte do solicitante, que deve seguir as instruções e levantar os documentos necessários, como por parte do oficial, orientando os clientes com os procedimentos que devem ser realizados. “Porque muitas vezes a pessoa não chega ao cartório com o requerimento e a documentação prontos, eles vão primeiro receber as orientações necessárias. E cabe ao oficial treinar a sua equipe no sentido de conversar e guiar essa pessoa, não apenas no balcão mas também ao telefone, e tentar, diante da complexidade e do que o cliente precisa, levar tudo isso ao oficial e ele tentar buscar a melhor maneira possível para auxiliar essa pessoa”, concluiu a registradora.

*O nome foi alterado para resguardar a identidade do indivíduo

Fonte: Assessoria de Comunicação – Arpen/SP

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