Nascimento

‘Fui traficada quando era bebê. Aos 30, reencontrei família no Brasil’

Durante 15 anos, Isabella dos Santos viveu uma “verdadeira novela”, como ela mesma conta: ainda menina, criada por uma família adotiva em Paris com o nome de Charlotte, começou a desconfiar que existia algo errado em sua adoção, investigou seu passado, confrontou a mãe, com quem tinha uma relação conturbada, e descobriu que foi vítima de tráfico de pessoas quando ainda era um bebê.

 

Há dez anos, veio para o Brasil, seu país natal, mesmo falando pouco o português e praticamente sem documentos. Seguiu sua busca por mais alguns anos até encontrar mais peças do quebra-cabeça. Encontrou a irmã biológica e descobriu que foi enviada à França em um esquema criminoso de venda de crianças.

 

Hoje, aos 35 anos, Isabella adotou nome e sobrenome brasileiros, dados por sua mãe biológica, e trabalha em um documentário que contará sua história e a de outras pessoas traficadas para adoção na Europa, como ela.

 

Em entrevista a Universa, ela conta sua história.

 

“Ouvi tantas histórias que nenhuma parecia verdade”

 

“Sempre soube que era adotada. Não era fisicamente parecida com meus pais adotivos e eles eram bem mais velhos que os outros pais. Também sabia que tinha nascido no Brasil e que tinha sido levada para essa família na França — que, na verdade, não era bem uma família, porque era um casal muito conturbado, meu pai adotivo tinha problemas com bebida e drogas, e eu não tinha outros parentes.

 

Mas, ao mesmo tempo, minha mãe adotiva não falava muito do assunto, não dava detalhes, era um tabu. Ela sempre contava histórias diferentes: uma hora dizia que eu tinha sido largada no lixo, outra hora que eu tinha sido entregue a um orfanato.

 

Eram tantas versões que nenhuma podia ser verdade. Sempre que eu insistia, ela inventava uma história diferente, gritava comigo.

 

Conforme fui crescendo, minha angústia crescia e eu passei a desconfiar que tinha algo errado em relação ao meu passado.”

 

“O começo da busca pela minha história”

 

Aos 15 anos, Isabella viu uma pasta com seu nome em uma estante do escritório do pai: Charlotte. Sua mãe adotiva trancava o escritório todas as noites, mas ela conseguiu descobrir onde a chave era guardada, abrir o cômodo enquanto os pais dormiam e pegar a tal pasta.

 

Lá, encontrou algumas pistas sobre sua origem. Uma certidão de nascimento brasileira, emitida em São Paulo, como se tivesse nascido em 30 de maio e fosse irmã gêmea de um menino. Dizia, também, que os dois eram filhos de Maria das Dores.

 

A pasta tinha ainda exames médicos anteriores à data de nascimento que constava em seus documentos franceses e um passaporte de um bebê, ambos com o nome de Isabella.

 

Ela encontrou, por fim, alguns extratos bancários e uma transferência de seus pais adotivos para uma mulher cujo nome já havia escutado entre as diferentes histórias que sua mãe contava sobre sua adoção. Aqui, vamos chamá-la de Silvia — o nome é fictício, foi alterado a pedido da entrevistada.

 

“Minha mãe adotiva não foi enganada. Ela sabia de tudo”

 

“A primeira coisa que me preocupava era saber se o garoto era mesmo meu irmão. Ele foi adotado ao mesmo tempo que eu, por uma família amiga dos meus pais adotivos. Quando a gente era pequeno e brincava juntos, as pessoas se referiam à gente como ‘os gêmeos brasileiros’. Mas, quando eu perguntava para a minha mãe adotiva, ela dizia que não éramos irmãos, de jeito nenhum, porque ele tinha cabelo crespo e a pele mais escura que a minha. Ela era bem racista.

 

Tive medo de apanhar, mas tomei coragem e fui confrontar minha mãe adotiva. Antes disso, tirei cópia de todos os documentos e deixei os originais na casa de uma amiga, com medo que ela encontrasse e destruísse.”

 

Nessa discussão, a mãe adotiva de Isabella acabou contando a verdade. Explicou que Maria das Dores foi uma espécie de laranja, registrada falsamente como mãe de Isabella e do menino, que não são irmãos biológicos, mas foram forjados como irmãos gêmeos para que a quadrilha de tráfico de pessoas pudesse enviar as duas crianças à Europa de uma vez.

 

Ela contou, ainda, que a mãe biológica da jovem era uma moça nova e que o pai era italiano, mas que não quis assumir a criança.

 

“Naquele momento, entendi que minha mãe adotiva não foi enganada. Ela sabia da história inteira. Foi um caos, uma cena horrível, e pouco depois acabei saindo de casa”.

 

“Aos 25 anos, cheguei ao Brasil como uma cidadã brasileira”

 

“Terminei o ensino médio, entrei na faculdade, morei na Espanha e nos Estados Unidos. Queria chegar no Brasil formada e fiz tudo isso sozinha, meus pais adotivos não me ajudaram em nada.

 

Aos 25 anos, consegui chegar ao Brasil como brasileira. Fui ao consulado na França, contei minha história e recebi um passaporte brasileiro, mas com o nome de Charlotte, porque até então eu não sabia meu nome verdadeiro.

 

Lá, disseram que meu caso era muito complexo, que não sabiam como resolver.

 

“Eu sou uma cidadã que foi vítima de tráfico de pessoas quando ainda era um bebê e o Estado brasileiro nem me deu apoio, não soube me proteger quando eu era criança e nem me amparar na vida adulta.”

 

O consulado brasileiro deveria ter feito contato com o Brasil, explicar a situação e colocar alguém para me receber no aeroporto, me conduzir até as autoridades, me dar algum apoio. Mas não. Tive que pular de cartório em cartório, defensoria, polícia. Eu conseguia me expressar em português, mas precisava de orientação.

 

No Rio de Janeiro, consegui um emprego de babá e, depois, de empregada, morando no quarto dos fundos de uma família francesa, porque não tinha documentos aqui.

 

Mais tarde, consegui emitir uma carteira de trabalho e fui contratada para trabalhar na recepção do Copacabana Palace. Só depois de dois anos morando aqui, quando conheci a ONG Mães do Brasil, finalmente consegui emitir uma certidão de nascimento e um RG brasileiro — tudo com o nome de Charlotte, mas, pelo menos, tinha mais documentos. Até então, vivia só com o meu passaporte.”

 

“Disseram que seria impossível, mas encontrei minha família”

 

A partir de 2015, com a ajuda da ONG e de algumas advogadas, as investigações de Isabella avançaram: ela conseguiu falar com Maria das Dores — que tinha sido registrada como mãe dela na certidão falsa que encontrou na França — que lhe deu algumas pistas sobre sua mãe. Depois, fez contato com outros brasileiros vendidos para a adoção na Europa na mesma época que ela e conseguiu descobrir que todos tinham nascido na mesma maternidade, em São Paulo.

 

Por fim, teve acesso ao prontuário do hospital em que nasceu. Por sorte, o documento estava preservado, e ela encontrou o nome de sua mãe: Jacira Lima dos Santos, que tinha 21 anos quando Isabella nasceu.

 

“Pensei: ‘É um milagre’.

 

“Estava no Brasil há quatro anos, fui a muitas delegacias, cartórios, fui a Brasília, ao Ministério da Justiça, encontrei deputados, prestei depoimento em uma CPI sobre tráfico humano, e ouvi de muitas pessoas que seria impossível encontrar minha mãe.”

 

Um delegado da PF me disse para desistir. Nem eles, que seriam os mais capacitados para me ajudar, encontraram alguma coisa, e eu consegui”

 

Com o nome da mãe, Isabella conseguiu encontrar a irmã mais velha, Lucélia dos Santos, nas redes sociais. Um exame de DNA confirmou o parentesco. Mas, mesmo antes do resultado, elas não tinham dúvidas: por conta da semelhança física, se reconheceram imediatamente como irmãs.

 

“Minha irmã me contou que nossa mãe morreu três anos depois que eu nasci. No mesmo dia em que eu tive esse sentimento de vitória, de encontrar minha família depois de anos de buscas, tive também esse sentimento de perda por saber que nunca vou poder abraçar essa mãe”.

 

“Tinha uma parte do quebra-cabeça e minha irmã a outra”

 

Quando encontrou Lucélia, Isabella pôde reunir as informações que tinha com a parte da história que a irmã conhecia. Foi então que as peças se encaixaram, “como um quebra-cabeça”, fala.

 

Neste ponto da história, Isabella conta que a mãe era empregada na casa de Silvia quando engravidou — possivelmente do marido dela, que era italiano, e não aceitou reconhecer a criança. A história bate com as informações que ela recebeu da mãe adotiva antes de deixar a França.

 

“Em 2014, comecei um processo de investigação de paternidade. O homem se negou a fazer o exame diversas vezes, até que, no ano seguinte, ele morreu”.

 

Ao que tudo indica, Silvia e o marido teriam sequestrado Isabella com poucos dias de vida e negociado com a família francesa. Assim, a menina teria sido enviada a Paris com Maria das Dores e outro menino, como se fosse a mãe e os filhos gêmeos, mas tudo forjado pelo casal.

 

“Nossa mãe teve a primeira gravidez aos 16 anos e foi expulsa da casa dos pais, que eram muito tradicionais. Quando a minha irmã nasceu, minha avó pegou para criá-la, mas deixou minha mãe na rua.

 

Alguns anos depois, ela conseguiu um emprego na casa de uma madame e engravidou. Quando eu nasci, a Silvia, que era patroa dela, ficou comigo um dia que minha mãe saiu de casa e não deixou ela entrar de volta. Trancou a porta.

 

Minha mãe não sabia o que fazer, e minha avó acabou convencendo ela a não ir à polícia, segundo a minha irmã.

 

Até morrer, minha mãe falava de mim. Dizia para Lucélia que ela tinha uma irmãzinha, Isabella, e que ia me procurar, me pegar de volta.

 

Me fez tão bem saber que minha mãe escolheu um nome pra mim, e que eu tinha uma família que me queria, que me amava. Isso me consolou muito, porque essa ideia de ter sido jogada no lixo faz muito mal, tira a nossa autoestima. Tem que ser muito cruel para falar isso a uma criança, mesmo que fosse verdade”.

 

Agora, Isabella tenta colher provar para provar na Justiça que o marido de Silvia é seu pai. O objetivo é fazer um exame de DNA com material genético de uma meia-irmã, que é filha dele com outra mulher, e uma tia, irmã dele — as duas se recusam a, espontaneamente, fornecer material para o exame.

 

Além disso, ela grava um documentário contando sua história.

 

“Minha mãe era uma pessoa amorosa, mas foi vítima do machismo, do descaso, da desigualdade. Tem muitas mulheres que passam por isso e muitas crianças que também são traficadas, como eu. Por isso quero falar do assunto. É um dever em relação a mim, à memória da minha mãe e às outras vítimas.”

 

Fonte: Universa – UOL

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