Rota Jurídica – Garantida mudança de sobrenome a mulher que sofreu transfobia na família
A retificação do prenome e da classificação de gênero nos registros civis são um passo importante para a garantia da dignidade humana, do respeito e da cidadania às pessoas transexuais. Desde 2018, após votação do Supremo Tribunal Federal (STF) e publicação de regulamentação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tal alteração pode ser realizada diretamente em cartórios do país, sem a necessidade de solicitação judicial, o que representou um avanço significativo para que os direitos básicos dessa população sejam assegurados.
Em alguns casos, contudo, se faz necessária ação mais abrangente, que carecem de atuação judicial ou extrajudicial para serem solucionadas. Nesse contexto, a 2ª Defensoria Pública Especializada de Atendimento Inicial conseguiu, na Justiça, a alteração do sobrenome de uma mulher que já havia realizado a retificação de seus documentos em cartório. A sentença, proferida no último dia 19 de julho, garante a ela o direito de suprimir um sobrenome que lhe causava sofrimento em razão da transfobia sofrida no âmbito familiar durante toda a infância.
“Essa mudança de sobrenome representou um alívio perante o constrangimento que ele me trazia. Eu me sentia como se não fosse cidadã, não sendo escutada e amparada nesta questão. Inclusive, já tinha perdido as esperanças de conseguir a vitória neste caso. Após a decisão favorável da Justiça, esse sentimento deu lugar a um fio de esperança”, relata a professora de História Walquíria Hiller de Oliveira (nome que agora consta em seus registros).
Linha do tempo
Obtida em uma ação de retificação de registro civil proposta pela defensora pública Ana Carolina Leal de Oliveira, a decisão foi a mais recente em uma série de atos judiciais e extrajudiciais realizados pela DPE-GO desde 2017, quando Walquíria passou a ser assistida. À época, quando ainda não havia possibilidade de se fazer a alteração de outra forma, ela buscou a instituição para obter uma autorização judicial para utilizar seu nome social perante órgãos públicos e privados.
A partir de então, a Defensoria Pública prestou assistência jurídica em diversas frentes a favor da assistida. Em uma delas, ainda em 2017, a instituição garantiu, de forma extrajudicial, que Walquíria realizasse a atualização de documentos bancários a partir da apresentação de ofício, o que foi bem sucedido.
Naquele ano, porém, uma nova atuação extrajudicial se fez necessária após o Detran-GO se recusar a realizar a renovação de sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH) com o seu nome social. O episódio de transfobia levou a DPE-GO a requerer à autarquia a realização de treinamento e capacitação de todos os funcionários e funcionárias para o devido atendimento de pessoas transexuais e travestis, o que foi realizado no início do ano seguinte.
Em março de 2018, a atuação judicial, também conduzida pela defensora pública Ana Carolina Leal de Oliveira, garantiu, em segunda instância, a dispensa da realização de prova pericial para a mudança de seu prenome e gênero, assegurando que a retificação fosse feita levando em conta apenas a apresentação de laudo psiquiátrico, sem que ela fosse submetida ao procedimento que poderia lhe causar constrangimento. A decisão autorizou, ainda, que a professora passasse a utilizar o seu nome social ao assinar os documentos na escola em que trabalhava.
No decorrer dos meses seguintes, após a mudança advinda do entendimento do STF, Walquíria realizou a alteração de prenome e gênero e buscou, com o auxílio da Defensoria, a atualização de suas informações junto aos órgãos competentes. “Na primeira vez que fiz isso (a retificação dos documentos), o apoio da Defensoria, com o envio de ofícios para os órgãos públicos, foi fundamental para a agilidade do processo”, conta ela.
Esperança
Diante de toda a trajetória traçada, Walquíria avalia que sua experiência pode representar esperança para a população trans que não sabe que é possível obter atendimento jurídico na busca por ter sua cidadania respeitada. No entanto, ela considera que ainda há tabus no sistema de justiça e acredita que isso pode ter prejudicado muitas pessoas no decorrer dos anos, principalmente pelo condicionamento da mudança de documentos à realização de cirurgia de redesignação sexual e da obrigatoriedade da emissão de provas periciais.
Frente a esse cenário, ela defende a ampliação das políticas públicas voltadas para a população trans, garantindo que a retificação dos documentos ocorra de forma financeiramente acessível nos cartórios e que cirurgias de transgenitalização e tratamentos hormonais sejam ofertados com qualidade.
“O direito ao nome e ao gênero adequados nos documentos é fundamental para pessoas transexuais/transgêneros começarem a ter o direito de viver. Homens trans muitas vezes vivem na informalidade por conta do constrangimento relacionado à documentação. No caso das mulheres transexuais, a situação é muito mais dramática, pois a esmagadora maioria das mulheres trans ainda hoje está na prostituição. E não é porque querem, mas sim porque é a única profissão em que não precisam mostrar um documento”, afirma a professora.
Fonte: DPE-GO